O Futebol Feminino brasileiro evolui tecnicamente, ganha visibilidade e recebe cada vez mais investimentos. Mas, junto com o crescimento, surge um inimigo silencioso — e muitas vezes ignorado por quem marca o calendário: o calor extremo. Em um país continental como o Brasil, onde temperaturas entre 30 °C e 38 °C são comuns, especialmente entre 11h e 15h, o clima se tornou um dos principais fatores que afetam desempenho, saúde e longevidade das atletas.
A ciência já falava. Agora, o departamento de saúde e performance do São Paulo Futebol Clube, em entrevista exclusiva ao Campo Delas, do Portal iG confirma: há jogos que são simplesmente desumanos.

Quando o calor derruba o desempenho
Pesquisas recentes da PubMed mostram que, em ambientes de calor intenso (ex.: 38 °C e 80% de umidade), jogadoras sofrem queda significativa no desempenho físico e cognitivo — menos sprints, menos distância total percorrida, tomada de decisão mais lenta e maior risco de erro técnico.
O fisiologista Gabriel Monteiro explica que isso não é teoria: é cotidiano.
“A literatura mostra que, entre 11h e 15h, as atletas podem ter redução de 10% a 20% nos sprints e 5% a 10% na distância total percorrida. Isso afeta desempenho técnico e cognitivo, e aumenta risco de lesão.”
Além da queda de performance, o estresse térmico exige mais do sistema cardiovascular, aprofunda a fadiga e compromete a tomada de decisão, componente essencial em um esporte de alta complexidade como o futebol.
Os riscos imediatos para a saúde das jogadoras
O calor não só prejudica o jogo: pode colocar atletas em risco. E, no Futebol Feminino, existe ainda um agravante: campos sintéticos, que chegam a ultrapassar 60 °C na superfície em dias quentes.
Segundo os profissionais do São Paulo:
“Jogos em calor extremo no sintético causam bolhas com frequência. Além disso, há risco de desidratação, câimbras, confusão mental e até síncope, que pode resultar em substituição ou internação.”
Os sinais de alerta são claros e muitas vezes surgem antes mesmo do intervalo:
- boca seca e sede excessiva
- queda de rendimento técnico
- erros de decisão
- câimbras
- tontura ou confusão
- urina escura após o jogo
- perda significativa de peso corporal
Segundo o médico Eduardo Zaffani, qualquer sinal de confusão mental é tratado como emergência médica.
Vale lembrarmos que, em setembro deste ano, por conta das altas temperaturas que chegaram a 42 °C em Teresina, sete jogadoras do Maranhão desmaiaram em campo, devido o forte calor no Estádio Albertão. Cinco delas deram entrada no Hospital de Urgência de Teresina (HUT) com diagnóstico de desidratação.

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Jogos às 11h, 14h e 15h: um problema evitável
A comissão reconhece que, na prática, muitas vezes não há escolha quanto ao horário, já que transmissões e logística definem a tabela. Mas a crítica é unânime:
“Em algumas regiões do Brasil, dependendo da época do ano, é quase desumano jogar entre 11h e 13h.”
Os profissionais reforçam que os jogos noturnos apresentam maior intensidade, melhor desempenho e menos desgaste fisiológico.

Como o São Paulo prepara as jogadoras para enfrentar o calor
Mesmo sem poder alterar o horário, o clube adapta todo o contexto pré-jogo:
Nutrição específica
A nutricionista Juliane Lirio detalha:
- Mais carboidratos leves (arroz, macarrão, frutas)
- Hidratação reforçada com água, eletrólitos e água de coco
- Redução de alimentos gordurosos 24h antes do jogo
Estratégia de hidratação
- Hidratação monitorada individualmente
- Comparação de peso pré e pós-jogo para identificar taxa de desidratação
- Orientação com base na coloração da urina
Recuperação pós-jogo
- Reposição agressiva de líquidos
- Suplementação específica
- Monitoramento de sintomas tardios
Tecnologia
O clube utiliza:
- GPS para controlar carga física
- Termografia
- Monitorização de perda de peso corporal como proxy de desidratação
E no pós-jogo, segundo o coordenador Gilvan Arruda:
“O primeiro cuidado é hídrico e nutricional. Reposição de líquidos, análise de peso e acompanhamento da urina.”
Calendário mais cheio em 2026
Com o avanço do calendário para 2026 — mais competições, mais datas e mais viagens — a comissão técnica prevê um aumento real de risco.
“O Futebol Feminino não estava habituado a dois jogos semanais. Quando a recuperação não é suficiente, somamos calor, viagens e menor tempo de treino. 2026 será um ano ainda mais desafiador.”
A fisiologia também alerta para o risco de aumento de lesões por fadiga:
“O risco cresce porque o estresse fisiológico será maior e a recuperação, menor. Lesões são multifatoriais, mas o calor extremo é um componente a mais.”
E sobre infraestrutura, o clube admite:
“Há equipes preparadas e outras não. A estrutura melhorou, mas ainda existe desigualdade.”
Rever horários: é ciência e segurança
Os profissionais são categóricos ao responder se o Futebol Feminino precisa rever horários:
“Sim! Os horários inadequados afetam diretamente desempenho, saúde e segurança das atletas.”
E sobre comparar masculino e feminino:
“Calor extremo afeta a prática esportiva independentemente do sexo.”
Qual seria a solução?
Conforme explica a comissão Tricolor, não existe um horário ideal, mas sim, racionalização, com um calendário responsivo ao clima.
“Sugestão: considerar temperatura local, horário, clima e diálogo com atletas e comissões. Jogos noturnos tendem a apresentar maior intensidade”, pontuaram os profissionais.
Hora de racionalizar
O Futebol Feminino vive seu melhor momento, mas também enfrenta fatores que precisam ser tratados com seriedade. Um deles é o calor extremo, que, segundo os especialistas, reduz desempenho, aumenta risco de lesão, afeta saúde e segurança, compromete espetacularidade técnica e acelera fadiga num calendário já cheio.
“É hora de racionalizar calendários, ouvir atletas e considerar condições reais. O clima não pode ser mais adversário do jogo”, destaca a equipe multidisciplinar do São Paulo
