Quantas jogadoras de futebol negras marcaram a história do Futebol Feminino do Brasil? Inúmeras, mas e com a prancheta? Do outro lado, na beirada do campo, ao redor das quatro linhas? Se eu te perguntar quantas treinadoras negras você conhece, conseguiria me dizer uma quantidade superior a cinco?
E sei que você teve dificuldade, pois realmente a quantidade é menor. De acordo com levantamento apresentado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, no passado menos de 8% dos técnicos brasileiros são negros (o que inclui pessoas pretas e pardas).
Neste 20 de novembro, data em que comemoramos a Consciência Negra, o Campo Delas conta a história de Fabiana Guedes, treinadora do Atlético Mineiro Feminino. Uma mulher que superou as adversidades impostas pela sociedade e, com resiliência, venceu o racismo, o machismo e hoje comanda uma equipe da elite do Futebol Feminino nacional.
Em entrevista exclusiva ao Campo Delas, do Portal IG Fabiana contou a sua jornada até se tornar treinadora.
Relação com Futebol
Criada na periferia de Taboão da Serra (SP), Fabiana começou a jogar bola com os irmãos mais velhos em um campo em frente à sua casa e se apaixonou pelo esporte.
“Eu fiquei muito tempo jogando com meus irmãos. Eu me apaixonei pelo futebol e, desde pequenininha, sempre atrás dos meus irmãos. Eles eram mais velhos do que eu e eu era menor, eles tinham a responsabilidade de cuidar de mim. Então, onde eles iam jogar, eu ia também. Na sequência, eu tive um projeto social da prefeitura, onde abriu vaga pras meninas, onde passei a conhecer, a disputar os campeonatos. Eu tive a oportunidade de fazer um teste, uma avaliação no Juventus. Até então eu só jogava amador, fiz o teste, passei e tive o primeiro contato com competição, com ficar fora de casa, tinha só 16 anos.”
E a partir desse momento, Fabiana seguiu em sua carreira como jogadora de futebol feminino. No Brasil, teve passagens pelo Santos, Botucatu e, na Europa, jogou na Áustria e Inglaterra antes de retornar para seu país natal e começar a transição de carreira.
“Retorno para o Brasil, eu vi que a realidade é a mesma. A gente não tinha evoluído quanto ao salário, quanto à oportunidade para as mulheres, então eu já tinha trancado a faculdade por duas vezes para mudar de país. Eu tinha 29 anos, então pensei estar num clube que me desse uma bolsa de faculdade. Então eu optei por jogar num clube que fornecesse bolsa e assim eu fui estudando e pensando em transitar de carreira para trabalhar na comissão técnica.”
Comissão Técnica
Ao se aposentar, Fabiana Guedes contou com auxílio para poder deixar a carreira de jogadora e ingressar na comissão técnica.
“Eu parei de jogar com 32 anos, mas eu já estava formada. E entrei direto no clube. Eu tive muitas pessoas que me ajudaram no processo. Meu ex-treinador, Mauriz, foi ele que me puxou, falou: ‘Olha, você é muito boa, você é muito inteligente, você pode trabalhar na comissão e, assim que você decidir parar, eu já vou te dar uma oportunidade aqui no clube, trago você como auxiliar e vou te mostrando os caminhos. Você vai fazendo o curso, vai estudando, vai se aperfeiçoando, que eu vou te dar esse pontapé, eu vou te ajudar.’”
Fabiana Guedes atuou como auxiliar técnica e chegou a enfrentar dificuldades, como ser questionada por seguranças sobre o que fazia nas proximidades do campo. Mas persistiu no seu sonho de se tornar treinadora de futebol.
Atlético Mineiro
Após atuações como auxiliar técnica, neste ano Fabiana assumiu seu primeiro trabalho como técnica principal ao ser contratada pelo Atlético Mineiro Feminino para comandar a equipe durante o Brasileirão Feminino Série A1.
“Quando cheguei, o Atlético tinha um ponto e quem estava na frente tinha sete. Eu só tinha quatro jogos e não podia errar. Então eu cheguei numa pressão muito grande, mas muito consciente de que os processos estavam sendo alinhados aqui. Então a gente trabalhou muito, a gente focou bastante nesses quatro jogos, as jogadoras também têm a grande porcentagem do acesso, as jogadoras que abraçaram rápido o processo.”
E em pouco tempo conseguiu recolocar a equipe no rumo certo e conquistar o acesso para a elite do Futebol Feminino nacional. Em 2026, Fabiana Guedes se une a Rosana como as únicas técnicas mulheres negras no Brasileirão Feminino Série A1. Fabiana também comentou sobre a responsabilidade de ser uma mulher negra treinadora na elite:
“Na primeira divisão temos duas, que sou eu, que vou pela minha primeira vez na primeira divisão, e a Rosana. Eu acho que a gente tem uma responsabilidade muito grande, né? A gente carrega uma responsabilidade porque a gente carrega a responsabilidade de trazer as outras. A gente sabe que tem mais mulheres no contexto que também estão brigando para chegar onde eu e Rosana estamos.”
Inspiração
A jornada da mulher negra é diferente, mas Fabiana destaca a importância de ser inspiração para que outras mulheres negras também possam viver seus sonhos dentro e fora das quatro linhas.
“É uma barreira que a gente vem quebrando no dia a dia, é uma luta, uma resiliência que a gente tem e que a gente precisa prosseguir. Quando a gente chega num cargo de liderança, eu fico feliz porque eu represento muita gente que às vezes acha que não consegue. E acho que é um pouco mais difícil porque a luta realmente é outra, a gente fala de uma luta histórica, a gente é muito desfavorecida. Então, quando a gente chega, a gente serve de inspiração para os que estão chegando.”
Fabiana Guedes enfatiza como a resiliência é fundamental para vencer as barreiras que o preconceito racial e o racismo impõem.
“Olha, ser técnica negra acho que tem todo um contexto por trás. Ser mulher no futebol já é uma coisa, ser mulher dentro de um esporte que é considerado muito de homens, que eles falam que futebol foi feito para homens… A gente quebra esse tabu todos os dias. E a gente precisa falar sobre isso todos os dias. Toda hora a gente vai ter que falar. Eu acho que é um ato de resistência, capacidade de se capacitar para ser líder, porque é muito difícil chegar. Hoje a gente representa muita coisa: ser mulher dentro do esporte, ser mulher negra, que já é a linha de chegar e de estar em outro lugar. E a gente sai um pouco atrás. Essa é a questão. Então a gente tem que ser muito resiliente.”
