O futebol sempre foi definido por técnica, estratégia e intensidade. No entanto, nos últimos anos, um novo elemento passou a influenciar diretamente o esporte: o clima. Ondas de calor prolongadas, quedas severas na qualidade do ar e mudanças bruscas nas condições ambientais já alteram treinos, desempenho e até calendários. A crise climática, antes tratada como projeção futura, agora faz parte da rotina do esporte.
Em torneios recentes, como a Euro 2025, jogadoras enfrentaram partidas sob temperaturas superiores a 30 °C. Antes mesmo de entrar em campo, as seleções precisaram redesenhar toda a preparação: crioterapia, coletes de resfriamento, toalhas geladas, aquecimentos encurtados e sessões extras de hidratação — medidas que, até pouco tempo, eram consideradas incomuns.

Ainda assim, quando a bola rola, nenhum protocolo consegue amenizar a sensação de que o jogo ficou mais pesado. O ritmo cai, a recuperação entre as ações demanda mais tempo e cada arrancada exige um esforço maior do corpo. Assim, o clima — e não o adversário — passa a ditar a intensidade da partida.
O problema não é só europeu — o Brasil vive isso há anos
Essa situação não se restringe aos grandes torneios da Europa. Como mostramos recentemente no Campo Delas, na matéria “Calor como adversário: clima e horários ameaçam o Futebol Feminino”, o Brasil enfrenta episódios ainda mais críticos.
Jogos marcados entre 11h e 15h, com temperaturas que variam de 30 °C a 38 °C, tornaram-se rotina em diversas competições nacionais. Como consequência, o rendimento cai, a fadiga aumenta e o risco de desidratação e lesões cresce significativamente. Especialistas explicam que a exposição prolongada ao calor reduz ações de alta intensidade, afeta a precisão técnica e prolonga o tempo de recuperação — problemas ampliados pela falta de climatização e pela ausência de sombra em muitos estádios.

Além disso, o calor extremo já obrigou federações a mudar horários, antecipar treinos para antes do nascer do sol e realizar ajustes emergenciais nos calendários. Em clubes com menos estrutura, a solução acaba sendo improvisada, o que escancara a desigualdade climática dentro do próprio esporte.
A coordenadora do Núcleo de Performance de preparadora física da Ferroviária, Karla Chaves Loureiro, traz dados que são alarmantes quando pensamos na saúde das atletas durante uma partida:
O principal ponto que impacta negativamente pode estar relacionado a desidratação, os estudos indicam que perdas a partir de 2% da massa corporal já é o suficiente para influenciar na queda de performance e a partir de 3% podendo aumentar a probabilidade de lesão.
Treinos interrompidos, jogos remarcados e ar irrespirável
O impacto climático no futebol vai muito além do desconforto térmico. Em diversos países, partidas foram canceladas por causa da má qualidade do ar gerada por queimadas ou poluição. Em outros, gramados ficaram alagados após chuvas intensas. E, em regiões de seca prolongada, campos se transformaram em terrenos duros e irregulares, aumentando o risco de lesões graves.
Essa instabilidade climática altera completamente a dinâmica de clubes e atletas. Treinos são transferidos para horários improváveis, sessões técnicas são reduzidas e, muitas vezes, jovens que dependem de campos públicos ficam sem espaço seguro para praticar o esporte. Os impactos são sentidos desde o alto rendimento até as categorias de base.
A resposta dos atletas: adaptação e mobilização
Diante desse cenário, atletas de diferentes modalidades passaram a se mobilizar. A campanha global Adapt2Win, reunindo esportistas de vários países e esportes, busca pressionar líderes globais a investir em políticas de adaptação climática. A premissa é clara: reduzir emissões é essencial, mas preparar cidades e comunidades para lidar com impactos que já existem é igualmente urgente.
Atualmente, menos de 10% do financiamento climático mundial é destinado à adaptação — um índice considerado insuficiente. Com isso, populações vulneráveis permanecem expostas a ondas de calor, secas severas, enchentes recorrentes e problemas de saúde pública. No esporte, esse cenário coloca atletas em condições inseguras e imprevisíveis.
O risco de perder a essência: futebol para quem?
O futebol sempre foi considerado o esporte mais acessível do mundo. Bastam uma bola e um espaço aberto. No entanto, os extremos climáticos ameaçam essa simplicidade.
Quando o calor torna perigosa a prática ao ar livre, enchentes destroem campos comunitários ou a seca converte gramados em poeira, comunidades inteiras perdem o acesso ao esporte. Assim, aquilo que sempre foi um direito coletivo corre o risco de se transformar em privilégio — restrito a locais com infraestrutura climatizada e manutenção constante.
Trata-se de uma mudança silenciosa, mas já em curso.
Adaptação não é desistir — é garantir o futuro do esporte
Assim como jogadores aprendem a se adaptar a novos estilos de jogo, táticas e adversidades, cidades e instituições precisam se preparar para um clima que já mudou. Isso exige investimentos em:
– gestão eficiente de água;
– infraestrutura esportiva resistente a extremos climáticos;
– sistemas de saúde prontos para episódios de calor intenso;
– políticas públicas que incluam o esporte na pauta climática;
– financiamento acessível para regiões mais vulneráveis.
A adaptação não substitui o combate ao aquecimento global; ela protege vidas enquanto essa luta avança.
O que acontece hoje em treinos, estádios e campos amadores é apenas um reflexo do que ocorre fora deles. O clima já mudou o jogo — e continuará mudando, seja nas grandes competições, seja nas peladas de bairro.
